Japão: vislumbre do futuro da humanidade?

Por Alexandre CymbalistaInspirações Latitudes12 de setembro de 2016

Quanto chegamos ao Japão e vivemos alguns dias por lá, começamos a entender como eles se recuperam tão rapidamente de eventos como a 2ª Guerra Mundial ou das constantes catástrofes naturais que volta e meia assolam o arquipélago. Os japoneses agem como um verdadeiro formigueiro, trabalham duro, muito duro, possuem um forma de agir onde muitas vezes as decisões são tomadas pensando na opinião do outro, e são educados rigidamente para seguirem as normas sociais sejam elas explicitas ou implícitas.

Vemos uma sociedade madura, através de um esforço incomum de si mesma. O que parece limpo, delicado e organizado é resultado desta força de conjunto, onde o indivíduo é sobrepujado e o coletivo aflora e permanece. Por fora é essa a impressão que temos, de algo conduzido para que todos se beneficiem. As ruas e estradas são perfeitas, não há lixo nem lixeira na rua (as pessoas levam para casa o lixo que produziram na rua), todos atravessam a rua na faixa apenas quando o sinal está verde, nunca antes! Não, nem mesmo às 4h da manhã, sem um único carro passando por ali nos últimos 5 minutos…

Os dias passam e cada vez mais ficamos de queixo caído. Os transportes coletivos funcionam, o trem, o ônibus e o metrô chegam precisamente no horário e saem pontualmente, as reservas de assentos são fáceis de fazer e as pessoas prestam auxílio mesmo sem falar inglês. Esta mesma precisão que vemos nos horários, também vemos nos sushimen cortando o peixe, nos fabricantes de carros, nos embrulhos de presentes. Não é apenas um cuidado extraordinário, mas uma busca pela excelência e perfeição. As frutas (até as frutas!) são de uma beleza quase irreal, o morango do mercado é um morango de filme de comercial, as árvores são milimetricamente cortadas, o jardim incrivelmente bem tratado. O respeito e a educação cívica são ainda mais impressionantes: transeuntes pedem desculpas se esbarram sem querer em você (mesmo em um metrô lotado!), vendedores e vendedoras estão sempre bem vestidos e sorridentes, políticos se sentem desonrados e se desculpam caso não cumpram bem seus papéis.

Há um conceito arraigado na cultura japonesa chamado Omotenashi que ilustra bem essa questão. É a forma de receber um convidado da melhor forma possível, sem segundas intenções, sendo verdadeiro no acolhimento aos convidados, seja na sua casa, em um hotel ou em um restaurante. Isso podemos notar claramente nos hotéis, em uma loja boutique ou mesmo em uma das milhares de lojas de conveniência que funcionam para a compra de produtos e serviços variados. O atendimento é mais do que treinamento empresarial, é a própria educação familiar e social que molda o indivíduo para entender que atender especialmente bem é uma virtude.

Assim como o Omotenashi, outros conceitos e metáforas presentes na cultura japonesa ajudam a explicar esta cultura ímpar. O coletivismo é representado por um dos eventos mais importantes para os japoneses: a florada das cerejeiras. Hanami, o nome dado para este fenômeno, é algo de muito valor e de grande expectativa. Normalmente acontece no final do mês de março ou começo de abril e é carregada de significados. A própria imagem da flor de cerejeira é símbolo máximo dessa busca coletiva: apesar de bonita é pequena e não exerce grande atração sozinha. Mas ao vislumbrar a árvore florida, ou melhor, um conjunto de árvores enfileiradas desabrochando milhões de pequenas flores brancas ou rosas, não é raro perceber pessoas ao seu lado chorando, tamanho o espetáculo. A florada das cerejeiras marca o fim do inverno, a chegada da vida novamente. Nestes dias as pessoas saem mais cedo do trabalho (algo raro!) e montam piqueniques sob as arvores, apreciando aquele cenário, independente do frio que possa estar.

A relação do japonês com a natureza vai além disso. Há um verdadeiro fascínio pelas estações do ano, tão marcadamente definidas. Há um respeito e uma vontade de estar nas florestas, de apreciar as árvores e a vegetação, pela sólida imagem das montanhas e em especial do monte Fuji. Fuji-san (Senhor Fuji) é como este vulcão é tratado, de certa forma como uma própria divindade, tamanho o apreço. E isso faz todo sentido considerando que os japoneses sentem-se como se tivessem duas religiões: o Shintoísmo e o Budismo. Ambas as religiões estão presentes no dia a dia, uma mais ligada às divindades da natureza e dos animais (Shintoísmo), a outra uma percepção de que tudo é parte de um ciclo, sejam as estações do ano, seja a vida e a morte (Budismo).  O fato é que estar no Japão nos enche de esperanças em relação ao ser humano. Se vivemos em um mundo violento, egoísta, desorganizado, corrupto, entre tantas mazelas, temos a impressão clara e feliz de que a humanidade tem futuro, pelo menos ali parece ter.

 

Mas há algo que não se encaixa perfeitamente. Na verdade se encaixa, mas na forma oposta. A questão é que viver pelo coletivo, abandonando parte das vontades individuais, também pode trazer problemas. Começamos a perceber isso levemente, observando placas no metrô para que bêbados não caiam nos trilhos. Depois isso vai ficando mais claro quando começamos a conversar com as pessoas sobre seu dia a dia e ler sobre alguns temas. Alguns chamam nossa atenção: a violência doméstica, o suicídio infanto-juvenil e o desinteresse cada vez maior de jovens em ter filhos e se relacionar com outras pessoas. Todos são assuntos tabu na sociedade japonesa, pouco discutidos explicitamente, mas que estão presentes em uma névoa fina sobre uma sociedade aparentemente perfeita. Os temas estão relacionados: a pressão pelo bom desempenho e longas jornadas de trabalho; a quase obrigatoriedade de seguir regras rígidas e não sair da linha; a necessidade de corresponder ao que se espera do indivíduo são fatores de pressão externos incrustados na cultura japonesa.  Não é a toa que isso leva crianças e adolescentes a buscar soluções abruptas para dar voz a este massacre psicológico ou, melhor ainda, tentar calar isso. Os adultos, principalmente homens, tentam resolver suas frustrações em bebida e em violência, ambos intimamente ligados. Os japoneses vem se isolando socialmente, os restaurantes contam cada vez mais com mesas (ou melhor, balcões) para uma pessoa, os almoços são cada vez mais solitários.

O padrão econômico alcançado, bem distribuído por todo um país, tem um custo. Faz com que as pessoas em idade ativa renunciem de parte de sua liberdade, e também de sua expressão individual. Esse contraste sociedade/indivíduo é um dos aspectos mais interessantes de se observar no Japão, entre tantos outros que vemos neste país de grande tradição e longa história. O conflito do ser externo e interno, de suas perdas e ganhos. Por fora a admiração é plena, por dentro parece que há alguns buracos difíceis de tapar. Não há, de fato, uma sociedade perfeita, mas que dá uma vontade tremenda de voltar…ah…não vejo a hora!

Alexandre Cymbalista é sócio-diretor da Latitudes.

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